A Geopolítica do "Show, Don't Tell": Como a Guerra Fria Moldou a Literatura Que Lemos Hoje
120 anos de história revelam como uma máxima de escrita se tornou arma cultural
ESCRITA CRIATIVA
Raniere Menezes
12/13/20255 min read


Se você já participou de uma oficina literária, provavelmente ouviu a regra de ouro: "mostre, não conte". Parece um conselho técnico inocente, certo? Mas e se eu te dissesse que essa máxima tem conexões diretas com a Guerra Fria?
A história que vou contar não é teoria da conspiração. É história documentada, com arquivos, cartas e financiamentos. E ela muda completamente a forma como entendemos a "boa escrita" contemporânea.
1897: Quando Tudo Começou
Um lugar improvável: Iowa, Estados Unidos, 1897. A Universidade de Iowa oferece um curso chamado "Verse-Making" (Composição de Versos).
Até então, universidades estudavam literatura morta — análise gramatical, etimologia, história literária. A ideia de que estudantes pudessem criar literatura e receber créditos por isso era impensável. A criatividade era vista como dom, não habilidade ensinável.
Mas Iowa disse: "E se a escrita for um ofício, como carpintaria?"
O Divisor de Águas de 1922
Vinte e cinco anos depois, Iowa dá o segundo passo. O reitor Carl Seashore anuncia que a universidade aceitará obras criativas — poemas, romances, contos — como teses de mestrado e doutorado.
Pense nisso: até 1922, você provava competência literária escrevendo sobre Milton. Depois de 1922, você poderia provar competência escrevendo seu próprio livro de poemas.
A escrita criativa acabava de se tornar "pesquisa acadêmica".
1936: A Oficina Que Mudou o Mundo
Em 1936, sob Wilbur Schramm, nasce o Iowa Writers' Workshop — a estrutura pedagógica que hoje reconhecemos como "oficina literária":
O professor não palestra por horas
O foco é o texto do aluno, distribuído previamente
Os colegas criticam o trabalho em grupo
Um escritor praticante (não um teórico) media a discussão
Essa metodologia se espalharia pelo mundo inteiro. Mas ainda faltava o ingrediente ideológico que a transformaria em dogma.
A Guerra Fria: Quando a Literatura Virou Arma
Entre 1941 e 1965, Paul Engle dirige o Iowa Writers' Workshop. E ele tem uma visão clara: literatura é campo de batalha na Guerra Fria.
Em cartas à Fundação Rockefeller, Engle alerta que a União Soviética está construindo universidades para "doutrinar" jovens intelectuais da Ásia, África e Europa. Sua solução? Transformar Iowa em um farol da "liberdade democrática".
O Dinheiro da CIA
Pesquisadores como Eric Bennett descobriram que o Workshop recebia financiamento da Farfield Foundation — uma fachada da CIA.
A CIA não queria recrutar romancistas como espiões (embora isso pudesse acontecer). A estratégia era mais sutil: influenciar o clima cultural global, promovendo uma "estética da liberdade" hostil ao totalitarismo soviético.
E é aqui que entra o "Show, Don't Tell".
Por Que "Mostrar" em Vez de "Contar"?
Durante a Guerra Fria, a literatura soviética era acusada de ser didática e abstrata — ela "contava" ao leitor a “verdade” histórica, subordinando a experiência individual às narrativas coletivas do Estado.
O projeto cultural americano promoveu o oposto:
TELL (Contar) = O modo do propagandista, teórico.
SHOW (Mostrar) = Foco na sensação imediata, no detalhe concreto, na experiência individual.
Como resumiu Eric Bennett, a filosofia de Iowa era: "Sensações, não doutrinas; experiências, não dogmas; memórias, não filosofias".
Ao insistir que o escritor deve apenas "mostrar" (a luz na mesa, o cheiro de café, a contração facial) e nunca "contar" (as causas socioeconômicas da pobreza, a natureza da opressão), o Workshop efetivamente despolitizava a ficção.
A Aliança com o New Criticism
Essa orientação ideológica foi reforçada pelo New Criticism, movimento que dominava as universidades americanas nas décadas de 1940-50. Figuras como Robert Penn Warren defendiam que o texto literário era um objeto autônomo, a ser analisado independentemente do contexto histórico ou intenções políticas do autor.
Na oficina, isso se traduziu na famosa "Regra do Silêncio": durante a crítica, o autor fica mudo. Não pode explicar o que "quis dizer". O texto deve funcionar sozinho.
Se você precisa explicar o contexto político para a história fazer sentido, você falhou — você "contou" em vez de "mostrar".
O Problema Pedagógico
Mas por que essa preferência virou regra universal?
A resposta é brutalmente prática: avaliar arte é difícil.
Como dar nota para imaginação? Como ensinar criatividade?
O "Show, Don't Tell" resolveu esse problema:
É difícil dizer que a visão de mundo do aluno está "errada".
É fácil dizer que ele usou "socou a parede" em vez de "furiosamente.
Isso criou o que Frank Conroy (sucessor de Engle) chamou de "Pirâmide do Craft":
Base: Gramática e clareza
Meio: Metáfora e imagem sensorial
Topo: Simbolismo
Significado e ideias: Relegados ou inexistentes
O aluno aprende a trabalhar do concreto ao abstrato, mas raramente chega ao abstrato.
O Resultado: O "Realismo de Oficina"
Essa convergência de forças (anticomunismo + pedagogia prática + New Criticism) produziu um estilo literário reconhecível:
Foco na epifania doméstica: Grandes dramas sociais evitados em favor de pequenos momentos pessoais
Economia linguística: Frases curtas, poucos adjetivos
Visualidade cinematográfica: O texto como câmera
Apoliticismo estrutural: Política como traço de caráter, não motor da trama
Raymond Carver é frequentemente citado como ápice desse modelo (ironicamente, seus textos foram editados para ficarem ainda mais minimalistas).
A Invasão Global
O modelo Iowa não ficou nos EUA. Através do International Writing Program e da proliferação de programas de MFA, o dogma foi exportado globalmente.
No Brasil: A "Iowa dos Pampas"
O Rio Grande do Sul tornou-se o epicentro brasileiro. Desde 1985, a Oficina de Criação Literária de Assis Brasil na PUCRS formou uma geração crítica: Daniel Galera, Michel Laub, Luisa Geisler, Carol Bensimon.
Assis Brasil sistematizou o ensino baseando-se em manuais norte-americanos, enfatizando:
Distinção entre "Cena" (mostrar) e "Sumário" (contar)
Importância do detalhe concreto
Controle rigoroso do ponto de vista
O resultado foi uma "Escola Gaúcha" marcada pela "secura": econômica, direta, avessa a adjetivos, focada na visualidade.
Isso contrasta violentamente com a tradição brasileira mais barroca (Clarice Lispector, Machado de Assis em seus momentos digressivos, Guimarães Rosa e a oralidade).
Na França: Resistência e Capitulação
A França resistiu por décadas. A cultura literária francesa girava em torno de cafés, salões e grandes editoras parisienses — não da universidade. A ideia de "ensinar" escrita era vista como mercantilização americana do espírito.
Mas a globalização venceu. Nas últimas duas décadas, programas de Création Littéraire surgiram, importando a estrutura do workshop.
E Agora?
Vivemos plenamente na "Era do Programa". A maneira como avaliamos um romance vencedor do Booker Prize ou um conto em uma oficina de São Paulo é mediada por critérios estabelecidos nos anos 1930-60, sob pressão da Guerra Fria.
Entender essa genealogia não invalida a técnica — "mostrar" continua sendo poderoso para criar vivacidade e empatia. Mas essa consciência histórica nos permite questionar sua universalidade.
O que perdemos quando paramos de "contar"?
A literatura do futuro talvez resida na capacidade de sintetizar: recuperar a permissão para "contar" e pensar grande, sem perder a precisão sensorial conquistada por um século de disciplina.
A tensão produtiva na literatura brasileira contemporânea — entre a secura técnica dos "filhos de Iowa" e a exuberância de nossas raízes — sugere que o modelo não é destino final, mas ponto de partida para novas experiências.
Contato
Envie suas dúvidas ou sugestões
ranzemis@gmail.com
© Raniere Menezes
